José Manuel Vilas Boas Ferreira
“O capital humano é o grande património da nossa ITV”
T24 Setembro 2017

Carolina Guimarães e Jorge Fiel

José Manuel Vilas Boas Ferreira, 51 anos de idade, é presidente da Valérius, Comendador da Ordem do Mérito Industrial, acionista da Ambar, Camport (ex-Campeão Português) e de duas empresas que fabricam componentes para automóveis.

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ndamos há dez anos a tornar-nos diferentes da nossa concorrência – conta José Manuel Ferreira, 51 anos, o presidente da Valérius, empresa de Barcelos que tem como core business a produção de vestuário em malha circular. Comendador da Ordem do Mérito Industrial, além da sua presença na têxtil é também acionista da Ambar, Camport (ex-Campeão Português) e de duas empresas que fabricam componentes para automóveis.

Porque é que diversificou para a indústria automóvel, no início do século?
Eu ainda trabalhava na Araújo & Irmão quando, no início do século, fomos atingidos pelo choque brutal da liberalização do comércio mundial e os compradores fugiram para Oriente. Aí vimos a têxtil a definhar e achamos prudente investir noutro setor.

Diferente da têxtil como a água do vinho…
Completamente diferente. Fomos da mão-de-obra intensiva para a tecnologia. O setor automóvel é muito mais complexo e exigente em certificações, garantia de qualidade e prazos de entrega. Em contrapartida, oferece muita estabilidade, com contratos de fornecimento que podem ir até sete anos.

O que o deixa satisfeito…
As duas empresas – Inoveplastika e Henfilgon – fazem um volume de negócios de 20 milhões de euros. Exportamos para a Alemanha, França, Itália, China, Brasil, etc.

Consegue sinergias entre os dois setores?
Do automóvel para a têxtil, trouxemos o rigor e a planificação. Da têxtil para o automóvel levamos a flexibilidade e a capacidade de adaptação permanente à mudança.

Em 2007, dois anos depois de investir no automóvel, com receio do futuro da têxtil, compra a Valérius e despede-se da Araújo & Irmão. Já não tinha dúvidas sobre o futuro da nossa ITV?
Já tínhamos comido terra. Aprendemos a aguentar a crise – só não sabíamos quando íamos sair. Mas sabíamos que o tempo das certezas tinha acabado. A única certeza era a incerteza. E tratamos de arranjar uma estratégia adequada a estes novos tempos.

José Manuel Ferreira
"Não é passando o dia todo fechado na fábrica que se ganha dinheiro"

Quando surgiu a oportunidade de comprar a Valérius já tinha acumulado capital suficiente para financiar a operação?
Não tinha dinheiro, mas tinha credibilidade e confiança. Eu era aquele que tinha ajudado a recuperar uma empresa de um buraco de cinco milhões deixado por um cliente alemão. Era um bom cartão-de-visita.

As coisas começaram logo a correr bem?
Nem por isso. Ao fim de um ano, fui a Milão visitar um cliente importante – que valia quase metade da nossa faturação e nos devia 1,1 milhões de euros – e ele anunciou-me que não tinha dinheiro para nos pagar e ia abrir falência.

Foi como lhe dessem um murro no estômago…
Nós sabíamos que aquela situação era uma bomba relógio, que não podíamos ter uma exposição tão grande a um único cliente. Foi um momento muitíssimo difícil.

Como reagiu?
Reuni o meu staff, disse-lhes que tínhamos um problema e tínhamos de ser pragmáticos e definir um plano para o atacar e ultrapassar.

"O respeito pelo prazo de entrega faz parte do valor acrescentado"

Enterrar os mortos e cuidar dos vivos, como fez o Marquês do Pombal após o Terramoto de 1755?
Mais ou menos isso :-). Chamamos os fornecedores, expusemos-lhes a situação e acordamos com eles um plano de pagamentos, de modo a nunca nos faltar matéria-prima. Estivemos atentos e ativos no processo de falência do cliente italiano, e ainda conseguimos recuperar parte do dinheiro em dívida, penhorando um imóvel que valia 200 mil euros e no final recuperamos 50% da dívida.

E a jusante?
Fomos para o mercado em busca de novos clientes. Naquele momento de aflição não podíamos estar só no segmento premium. Começamos a trabalhar com o grupo Inditex. Aumentamos a agressividade, colocando comerciais avançados à porta dos clientes – quando eles abrissem a porta, à procura de algo, nós já lá tínhamos que estar. E apostamos no serviço, serviço, serviço.

Qual foi a grande lição que aprendeu com a crise da falência do cliente italiano?
Que nunca mais iria fornecer um cliente sem antes conhecer bem a sua estratégia. E quando a estratégia me parece errada, digo logo ao comercial para desacelerar dele. Em resumo, passamos a escolher os clientes.

Em 2010 fizeram a primeira incursão no mundo das marcas, com a Onara. Porque é que a descontinuaram?
Analisamos detalhadamente a Onara e concluímos que estava no caminho errado porque estava a ser desenvolvida com o coração e não com a razão. Ora como o meu órgão mais sensível é o bolso… (risos)

Foi um mau movimento?
Não. Entre 2008 e 2009, quando, no meio da crise global, tivemos de sobreviver à falência do cliente italiano, lutamos pelo preço e descemos até ao low-cost para arranjar encomendas e a produção não parar. Entre 2009 e 2010, as vendas da Valerius cresceram 50%, – de quatro para seis milhões de euros. No início desta década precisávamos de voltar a subir na cadeia de valor, de propor coleções aos nossos clientes e a Onara deu uma ajuda nesse processo de reajustamento.

Como?
Nós éramos industriais puros. Sabíamos fazer muito bem o que o cliente queria, mas não tínhamos design nem o know-how de desenvolvimento de produto que a Onara tinha e era indispensável na nova visão que tínhamos para a Valérius.

Em que consiste essa nova visão?
Em primeiro lugar, perceber que os fornecedores são nossos parceiros e não os podemos estrangular. Se estabelecermos boas parcerias com os fornecedores teremos bons clientes. O que faz o preço é o que o consumidor final está disposto a pagar por uma determinada peça e por isso percebemos também que no novo paradigma era necessário obter certificações. E estabelecemos um novo modelo de gestão.

Como funciona?
Temos seis células, com uma enorme autonomia, que são centros de custos, com recursos próprios, que vão desde a produção até ao cliente. E uma equipa de controlo de gestão que anda pela fábrica toda e intervém se se acende uma luz vermelha. É um sistema horizontal, em rede, muito diferente do esquema tradicional em pirâmide.

Qual é o seu papel?
Supervisiono, aconselho e faço acontecer. Claro que mantenho contacto com os clientes, que encaramos como parceiros e com quem tenho uma relação de verdade e absoluta franqueza. Nunca escondo o que penso nas minhas conversas com fornecedores e clientes. Se acho que estão no caminho errado aviso-os: “Cuidado, olha que a parede está muito próxima…”

Passa muito tempo fora da empresa?
Não é passando o dia todo fechado na fábrica que os projetos se desenvolvem. É preciso andar no mundo, atento ao que se está a passar.

O que é decisivo para fidelizar um cliente?
Ter uma relação de confiança e lealdade. Sentirmo-nos bem um com o outro. É absolutamente essencial entregar-lhes o produto que ele comprou com a qualidade acordada e a tempo e horas. O respeito pelos prazos de entrega faz parte do valor acrescentado.

É mesmo um fator essencial de competitividade?
Se excluirmos alguns produtos alimentares, a moda é um dos produtos que mais rapidamente se deteriora. Desde que chega à loja, o seu prazo de validade é muito curto, entre seis a oito semanas. Se o produto não chega na data prevista está logo a depreciar-se. Esta velocidade é muito boa para a nós.

Porquê?
Porque nós, em Portugal, ao sermos flexíveis conseguimos ir de encontro aos prazos de entrega exigidos pelos nossos clientes e estamos próximos dos grandes mercados e das principais cadeias mundiais de distribuição.

Esse é um dos pontos fortes da nossa ITV. Quais são os outros?
A flexibilidade e o espírito de sacrifício e know-how dos nossos trabalhadores. O capital humano é o grande património da têxtil portuguesa. Os sucessos da Valérius devem-se à excelência de uma equipa que luta destemidamente e da certeza de que nada seria possível sem a sabedoria, dedicação e paixão de cada um dos nossos 134 colaboradores.

E os pontos fracos?
O marketing é o nosso calcanhar de Aquiles. Não somos comerciantes. Somos industriais. Somos muito bons a produzir mas depois não sabemos vender-nos. Outro dos nossos pontos fracos é o excesso de individualismo. Ao contrário de outros países, nós, portugueses andamos demasiado preocupados com os nossos concorrentes em detrimento de reforçarmos a nossa estratégia concertada.

Qual é o lead time da Valérius?
Quatro semanas para repetições. Oito semanas para um produto novo e até 12 semanas para produtos que tenham componentes externos. Mas vamos melhorar, encurtando prazos.

Como?
Dou-lhe um exemplo. Investimos meio milhão de euros num laboratório, que nos permite fazer internamente testes que dantes tínhamos de enviar para o laboratório externo. Aqui estamos a ganhar tempo.

A grande aposta da Valérius é no private label ou nas marcas próprias?
Temos cerca de 60 clientes de private label high cost, marcas como a Max Mara, Moschino ou Cos. As marcas próprias são uma mostra para os clientes. Os especialistas em marketing gostam muito de marcas. Mas eu sou um industrial. Digo sempre o mesmo aos nossos clientes: preocupem-se em vender, entreguem aqui a vossa produção, que nós encarregamo-nos do resto.

Deixou cair a Onara, mas no entretanto está a construir outras marcas, como a Sucre et Sel, Ballentina, Green Wish ou Concreto…
Usamos as marcas como mostruário e para aumentar a nossa capacidade de desenvolvimento de produto.

A que corresponde cada marca?
A Sucre et Sel é uma marca criada para o mercado italiano, desenhada por italianos, que agora vamos levar para o retalho no Reino Unido, onde já estamos com a Ballentina. A Green Wish é uma marca belga com uma identidade fortemente ligada às questões da sustentabilidade e do respeito pelo ambiente.

E a Concreto?
É mais uma marca que também funciona como mostra para os clientes de private label. Vale dois milhões de vendas/ano. Não tem uma grande expressão no volume de negócios da Valerius, que anda nos 30 milhões de euros, quase todo exportado.

Para onde exporta?
Cerca de 99% da produção para a Europa. Trabalhamos na proximidade. O mercado natural da nossa ITV é o europeu. Os mercados emergentes não são para nós.

Quais são as grandes tendências no mercado da moda?
A crise mexeu com as pessoas. A emoção não ultrapassa a razão. O consumidor final está cada vez mais exigente e quer encontrar no fitting, qualidade da matéria-prima e corte da peça o valor do preço que pagou por ela.

Como é que encara o futuro?
Andamos há dez anos a tornar-nos diferentes dos nossos concorrentes e a identificar os clientes, que transformamos em parceiros. Não há presente sem passado. E sem futuro o presente é muito curto. Vamos continuar neste caminho. Sabemos perfeitamente o que andamos a fazer. Não vendemos roupa. Vendemos moda e sonhos. E queremos continuar a vender muitos sonhos.

Perfil

José Manuel Vilas Boas Ferreira, 51 anos, nasceu em Barcelinhos, o irmão do meio dos três filhos do casamento entre uma empregada doméstica e um cozinheiro. Fez o 9º ano em Barcelos, 12º ano nas Novas Oportunidades (2011) frequentou Contabilidade (Tecla) e em 2016 conclui o Curso de Gestão Avançada na Porto Business School. Em 1987, após ter feito a tropa, na Polícia do Exército, foi, durante dois dias, empregado de escritório, antes de ir parar à têxtil onde debutou como cronometrista na Araújo & Irmão. Casado, tem dois filhos  – Patrícia, 24 anos, licenciada em Economia, e Pedro, 20 anos, estudante de Gestão.

A tropa foi um momento de viragem. Não só ganhou mundo (fez a recruta em Lisboa e esteve um ano no Porto) mas também disciplina. Antes a mãe estava sempre a chamar-lhe preguiçoso. Hoje admite que ela tinha razão. Os 20 anos (1987-2007) que passou na Araújo & Irmão, equivaleram a uma licenciatura, MBA e doutoramento em Gestão de Empresas, com especialização na ITV. Foi lá que conheceu Lucinda (o seu braço direito na Valérius) e aprendeu a evitar o naufrágio de uma empresa vítima da falência do seu principal cliente. No entretanto, por altura da viragem do século, ainda lhe sobrou tempo para debutar como empresário, não só na têxtil mas também no fabrico de componentes para a indústria automóvel. Até que, em 2007, o dono da TexAmérica foi oferecer a Valérius – e o Zé Manel agarrou a oportunidade.

As perguntas de
Teresa Marques Pereira
Brands Development Manager da Valérius

Como encara o futuro?
Vivemos numa época marcada pela incerteza, por isso é natural que eu tenha medo de falhar e que a minha principal preocupação seja a de não defraudar os nossos parceiros e os nossos colaboradores, mas estou firmemente convencido que estamos no caminho certo e que as pessoas que trabalham connosco acreditam no projeto. No dia-a-dia foco-me sempre no que é importante e nos problemas que estão ao meu alcance resolver. Os outros, espero que o movimento de rotação da Terra os solucione… : -).

Em meio século de vida já realizou muita coisa. Ainda tem algum sonho que lhe falte concretizar?
Gostava de ter um restaurante, que fosse também um centro de negócios. É um sonho que tenho desde miúdo, que pode não se tornar uma realidade e deve ter a ver com o facto do meu pai ter sido cozinheiro. Na indústria, a minha ambição é deixar um legado, uma marca de qualidade, o que penso estarmos a conseguir. Acredito muito e sinceramente no futuro da nossa indústria têxtil.

Lucinda Barbosa
CEO Valérius

O que é para ti mais aliciante, Zé Manel, gerir a parte têxtil ou automóvel?
Gosto muito da visão de futuro que é preciso ter para estar na indústria automóvel, mas o meu ADN é têxtil. São setores muito diferentes. O meu sócio no negócio automóvel costuma dizer que se tivesse de viver da têxtil morria todos os dias (risos). Na têxtil todos os dias somos confrontados com dez situações novas e diversas para resolver.

Nestes 30 anos, tiveste de tomar decisões difíceis. Se fosse possível voltar atrás as opções seriam as mesmas?
Faria algumas coisas diferentes. Ao longo deste 30 anos, os meus negócios tiveram os seus altos e baixos. O paradigma da têxtil mudou umas dez ou 15 vezes. Aprendi a adaptar-me rapidamente à mudança. Tornei-me um híbrido, que funciona com qualquer tipo de combustível. As minhas maiores vantagens são a capacidade que tenho de me pôr no lugar do outro – de virar o tabuleiro para ver o jogo do outro lado – e de gerir a partir do chão de fábrica, em vez de chamar as pessoas ao meu gabinete para perceber o que se está a passar.

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