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Latour e Bourdieu: rediscutindo as controvrsias

Bruno Rossi Lorenzi Graduado em Cincias Sociais pela Universidade Federal de So Carlos, e mestre em Cincia, Tecnologia e Sociedade pela Universidade Federal de So Carlos. E-mail: brunolorenzi@gmail.com Thales Novaes de Andrade Doutorado em Cincias Sociais pela Universidade Estadual de Campinas, e professor da Universidade Federal de So Carlos. E-mail:thales@ufscar.br

Introduo Apesar de serem autores fundamentais e recorrentemente utilizados pela sociologia da cincia e outras reas afins, Bruno Latour e Pierre Bourdieu distanciam-se em suas concepes da cincia em diversos pontos. Latour vem de uma tradio construtivista, iniciada por David Bloor. Este considerava que havia uma simetria entre as causas dos fatos cientficos, tanto os considerados verdadeiros, como os considerados falsos. Atribui, portanto, as mesmas causas sociais para os acertos e os erros, relativizando os fatos e propondo um novo modo de ver a cincia. Para Latour, os fatos cientficos so construes coletivas fixadas atravs de alianas entre atores (humanos e no humanos) formando uma complexa rede. J Bourdieu vem de uma tradio estruturalista, que considera os fatos sociais como produto de um meio social jamais neutro, onde a hierarquia e o poder esto sempre presentes. Bourdieu interpreta os fatos cientficos como fatos sociais, negociados dentro de um campo de lutas, no caso, o que chama de campo cientfico, atravs de seu capital especfico. Os dois autores se distanciam em vrios pontos, como veremos a seguir, j que partem de pressupostos e intenes muito diferentes. Apesar de suas diferenas serem pouco debatidas, j que comumente ou adota-se um, ou outro, como referencial terico, convm discutir suas diferentes vises, principalmente quando tratam da mesma coisa, a cincia. Afinal, a sociologia da cincia sairia enriquecida de um embate de tradies diferentes, como tenta se propor no final do artigo.

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Precedentes O autor que fundou a sociologia da cincia propriamente dita foi Robert K. Merton nas dcadas de 40 e 50. Desde ento, a sociologia da cincia passou por vrios temas, da descrio da cincia enquanto uma instituio social descrio dos fatos e tecnologias construdos atravs da cincia, entre outros. Merton (1974) baseia seus estudos na sociologia do conhecimento, mais precisamente nas concepes de Karl Mannheim e nas anlises de Scheler. Segundo o autor, Mannheim foi o responsvel por introduzir a problemtica do conhecimento nos estudos sociais. Baseado nas concepes de Marx e Lukcs, considera o conhecimento algo histrico e baseado na situao de cada sociedade (modo de produo, antagonismos de classe etc). J Scheler considerava um erro a crena naturalista de que os fatores reais (no sentido de naturais) determinam os ideais. Para ele, as idias no se efetivam a no ser que se liguem a interesses, impulsos, tendncias coletivas ou se incorporem em estruturas institucionais. Caso essas idias no se vinculem a fatores reais (sociais) esto fadadas a desaparecer. Para Merton (1974), a sociologia do conhecimento torna-se pertinente numa sociedade de conflitos, onde se duvida da validade e legitimidade das afirmaes, numa desconfiana mtua entre os grupos. O pensamento passa a ser considerado em termos de suas razes, perguntamos a origem da idia ao invs de considerarmos a suposio. Esta vertente da sociologia toma o conhecimento no seu sentido mais amplo, (no somente o cientfico), ou seja, idias, ideologias, crenas jurdicas e ticas, filosofia, cincia, tecnologia etc. As idias sempre esto em relao funcional com algum substrato: relaes de produo, posio social, interesses, relaes interpessoais, conflitos etc. A partir disso, Merton (1974) pensa a cincia como uma instituio ligada ao restante da sociedade, e s suas influncias, apesar de considerar a cincia como uma instituio delineada. Foi o primeiro a estudar sistematicamente a relao entre a cincia e as outras instituies sociais. O autor tenta responder a questes como: o que a cincia tem de especfico em relao s outras esferas sociais, em que o conhecimento cientfico se diferencia do produzido pelo restante da sociedade, como a cincia se mantm autnoma e quais os benefcios que isso traz, etc. Para Merton, (1970) o que caracteriza a cincia moderna enquanto uma instituio autnoma em relao ao restante da 108

sociedade o que ele chama de ethos cientfico. O autor defende que os cientistas possuem um complexo de valores e normas que se constituem como obrigao moral e orienta as pesquisas cientficas. Esse ethos seria o ingrediente cultural da cincia, que formaria o super-ego do cientista, o qual assimilado em graus diferentes por cada cientista.
O ethos da cincia se refere a um complexo de tom emocional de regras, prescries, costumes, crenas, valores e pressupostos, que obrigam moralmente os cientistas. Algumas fases desse complexo poder ser metodologicamente desejveis, mas a observncia das regras no dita somente por consideraes metodolgicas. Este ethos, como os cdigos sociais em geral, apoiado pelos sentimentos daqueles a quem se aplica. (Merton, 1970: 641 nota de roda-p n16)

A noo de revoluo cientfica e o Programa Forte Esses estudos estavam mais ligados cincia pensada na e para a sociedade, do que propriamente em seu contedo. Thomas Kuhn (2005) na dcada de 60 foi um dos primeiros a pensar no contedo cientfico enquanto elemento social. Baseado em suas experincias como fsico e em seus estudos da histria da cincia, em 1962 publica A estrutura das revolues cientficas, onde traa o que considera os conceitos fundamentais da maneira como considera que a cincia funciona e revoluciona a viso da cincia. Thomas Kuhn (2005) discute que, at ento, a noo mais comum de cincia era de que esta seria uma reunio de fatos, teorias e mtodos e que seu progresso se daria por acumulo de descobertas e inovaes individuais. Entretanto, Kuhn argumenta que a partir do estudo da histria da cincia, desde as cincias aristotlicas nota-se que a concepo de natureza mudou diversas vezes no decorrer da histria e nem por isso eram construdas de forma menos cientficas ou idiossincrticas que atualmente. Teorias que atualmente so obsoletas no poderiam ser consideras a-cientficas. Conclui, portanto, que impossvel continuar concebendo a cincia como um acmulo de conhecimento. A inovao de Kuhn (2005) consiste no abandono da idia de que o progresso cientfico se d por acumulao de descobertas, mas sim, atravs de revolues paradigmticas. Por paradigma, o autor entende um modelo ou conjunto de idias pelo qual os cientistas de uma determinada rea baseiam suas teorias e orientam seus estudos durante um perodo de tempo. 109

Considero paradigmas as realizaes cientficas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e solues modelares para uma comunidade de praticantes de uma cincia (Kuhn, 2005: 13).

Kuhn (2005) explica que enquanto esse modelo d conta das questes levantadas pelos cientistas, ele permanece. O autor chama esse perodo, em que as questes so respondidas simplesmente aplicando-se as teorias existentes de cincia normal. Esta, segundo ele, pressupe sempre saber como o mundo e seria o modo de funcionamento que se d na maior parte do tempo em cincia. Segundo o autor, somente quando a cincia normal no pode mais prosseguir que comeam as investigaes extraordinrias que tentam dar conta dos fenmenos inexplicveis que conduziro determinado setor da cincia normal a novos compromissos. A partir desse momento em que as questes no conseguem mais ser respondidas ou mesmo levantadas sem contradizer o paradigma, comea o perodo que o autor chama de revoluo cientfica. Relaxam-se, ento, as restries tericas e comea o perodo de revoluo, onde os fundamentos do paradigma at ento em vigor sero modificados, atravs de disputas tericas. A partir do momento que um novo paradigma for adotado, muda-se a compreenso dos fenmenos at ento parcialmente ou inteiramente inexplicados e, por conseqncia, tambm o todo o entendimento dos fenmenos j explicados at ento. O mundo do cientista tanto qualitativamente transformado como quantitativamente enriquecido pelas novidades fundamentais de fatos ou teorias (Kuhn, 2005: 26). A partir da onda gerada por Thomas Kuhn, David Bloor (1998) prope na dcada de 70 o que chama de Programa forte nos estudos da cincia. O autor inova por atribuir causas sociais tanto aos erros quanto aos acertos produzidos pela cincia. Para ele, tanto o erro quanto a verdade tm origens no arranjo social cientfico (paradigmas, teorias, equipamentos, experimentos etc) e deviam, portanto, serem tratados nos mesmos termos, ao contrrio do que ele chama de Programa fraco, que s via a influncia da sociedade nos erros cometidos pelos cientistas. Em seu livro Knowledge and Social Imagery, Bloor define o que so os quatro princpios do Programa Forte (Bloor, 1998: 38):
Causalidade: devemos nos ater aos fatores no cientficos que geram o conhecimento e do forma cincia; Imparcialidade: deve-se ser imparcial com respeito ao xito e o fracasso;

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Simetria: as mesmas causas devem explicar tanto as crenas falsas quanto as verdadeiras; Reflexividade: deve-se buscar explicaes gerais e aplicar prpria sociologia.

A partir do Programas Forte, vrios autores (Lynch, Latour, KnorrCetina) surgem no fim da dcada de 70 atravs dos chamados estudos de laboratrio. Um deles Bruno Latour, que nesse perodo estudou um laboratrio de neuroendocrinologia na Califrnia. Latour e Woolgar (1997) se colocam a compreender a produo dos fatos cientficos nesse laboratrio a partir de um ponto de vista etnogrfico. Os autores partem de uma concepo geertziana da cultura para tomar o conhecimento cientfico produzido no laboratrio como uma inscrio literria. Os fatos, segundo eles, seriam construes produzidas por todo um coletivo de pessoas e equipamentos (posteriormente humanos e no-humanos) que so gradualmente estabilizados at se tornarem fatos inegveis (ou no) por toda a comunidade cientfica. Os estudos de laboratrio: Latour e Woolgar Atravs do estudo etnogrfico desse laboratrio, Latour e Woolgar propem que os fenmenos produzidos pelos cientistas atravs de vrios testes, discusses, leitura de aparelhos e interpretao das inscries produzidas so considerados por esses atores como algo absolutamente objetivo e destacado das etapas anteriores, por mais que jamais fosse possvel chegar a eles sem as etapas anteriores. Os autores chamam esse processo de purificao (no confundir com a purificao de substncias qumicas do laboratrio), onde o fenmeno tratado como algo natural, e toda a sua construo cuidadosamente esquecida. Latour e Woolgar (1997) ainda descrevem o que chamam de estabilizao dos fatos. Segundo eles, os fatos vo de uma simples cogitao at quando considerado como verdade evidente por toda a comunidade cientfica. Latour e Woolgar (1997) concluem que apesar dos fatos serem impossveis de serem concebidos sem os paradigmas, instrumentos, inscries, discusses etc, a construo dos fatos simplesmente ignorada na hora da publicao dos artigos finais e edio dos manuais para estudantes. Os fatos so tratados como se fossem algo absolutamente objetivo e tudo colocado como simples descoberta. Dessa forma, o esquecimento do processo de construo dos fatos 111

cientficos algo central na epistemologia cientfica e essencial na considerao da natureza como algo dado previamente. Latour da pra frente ir desenvolver muitos estudos e conceitos para tentar compreender a produo dos fatos cientficos e sua manuteno, chegando concluso de que a sociedade moderna se engana muito em achar que consegue separar natureza e sociedade (Latour, 1994). Em Cincia em Ao (2000), Latour desenvolve, entre outros, o conceito de caixa-preta e redes scio-tcnicas. Para ele, os fatos cientficos e tecnologias so construdos atravs de redes de atores humanos e no-humanos (ou redes scio-tcnicas) onde os cientistas ou engenheiros constroem, atravs da traduo dos interesses de outros atores sociais e elementos no-humanos, fatos cientficos ou objetos tecnolgicos que vo lentamente ganhando coerncia dentro dessa rede at formarem uma caixa-preta: uma discusso encerrada ou uma mquina j funcional, de forma que se considera aquilo sem se entender a fundo, como um fato. A proposta de Latour (1994, 2000, 2001) que para entender como a cincia funciona, nada melhor do que observar como essas caixas-pretas vo se formando e a rede de atores humanos e no-humanos envolvida nesse processo.
A expresso caixa-preta usada em ciberntica sempre que uma mquina ou um conjunto de comandos se revela complexo demais. Em seu lugar, desenhada uma caixinha preta, a respeito da qual no preciso saber nada, seno o que nela entra e o que dela sai. (...) Ou seja, por mais controvertida que seja sua histria, por mais complexo que seja seu funcionamento interno, por maior que seja a rede comercial ou acadmica para a sua implementao, a nica coisa que conta o que se pe nela e o que dela se tira. (Latour, 2000: 14)

Aps se fechar uma caixa-preta e difundi-la no espao, ela tornase um ponto obrigatrio de passagem. Todos tero que citar o fato concretizado ou utilizar uma mquina essencial para alguma tarefa. Do modelo mais fraco (ser alistado), ao mais forte (tornar-se indispensvel), os cientistas e engenheiros executam vrios tipos de tticas para alistarem aliados para construo das caixas-pretas. Mas para isso, necessrio alistar o que Latour chama de aliados nohumanos. Latour demonstra que o que ele chama de scio-grama (aliados humanos) est conectado ao tcno-grama (aliados nohumanos). Dessa maneira, Latour explica que no h diferena entre o que se faz dentro e fora do laboratrio, pois, um no sobrevive sem o 112

outro. Se no h negociaes, no h apoio, no h patrocnio, no h verba, no h pesquisa. Sem aliados humanos no h como alistar os no-humanos. A translao indiferente para humanos e nohumanos. Segundo o autor, a sociedade e a cincia so indissociveis, o que h entre a cincia e a sociedade um alinhamento de interesses, translao heterognea de um e de outro lado. No h fato ou mquina sem ser coletivamente. Latour (2001) tambm discorre a respeito da construo do conhecimento em si. A esse processo, de transformao do objeto real em inscrio literria, d o nome de mediao (outro nome para traduo). O autor utiliza um exemplo que ele acompanhou de um grupo de cientistas no territrio brasileiro que tentavam definir (ou descobrir) se era o serrado que avanava sobre a floreta tropical amaznica ou o contrrio. Neste exemplo, h cientista de vrias reas (geografia, pedologia, botnica) que vo juntando elementos para escrever seu relatrio final. Mapeiam a regio estudada, recolhem folhas, pedaos de terra de vrias reas diferentes, etc. Depois de recolher o material, identificam e classificam segundo os padres de suas especialidades. Segundo Latour, o material recolhido em uma etapa transformado em forma travs de sua classificao. Essa forma servir como matria para a etapa seguinte, e assim sucessivamente. Por exemplo, o torro de terra recolhido pelo pedlogo (matria) ser classificado e desta maneira se transformar em forma. Essa forma servir como matria na analise seguinte onde o cientista ir usar esses dados para julgar o carter geral do terreno. Isso servir como matria na hora de desenharem o perfil do solo, e este perfil para fazer o relatrio final. como se as abstraes (forma) fossem elevadas n vezes, tornando-se abstraes de ensimo nvel. Isso , para Latour, um abismo entre o objeto e a sua classificao ou formulao, que dependem exclusivamente dos conceitos e padres formulados pelas cincias. portanto, segundo ele, imprprio ou errado acreditar que as cincias so objetivas no sentido clssico do termo, pois dependem de formulaes e acordos contingentes. A cincia como um campo: as concepes de Pierre Bourdieu Pierre Bourdieu (2003, 2004) comea a estudar o campo cientfico na mesma poca que os estudos de laboratrio estavam se desenvolvendo, onde apresenta suas crticas aos estudos sociais da cincia. 113

Nos anos 80 Bourdieu introduz o conceito de campo cientfico que, como os demais campos teorizados pelo autor, se caracteriza por ser um espao relativamente autnomo do macrocosmo social, onde circula um tipo particular de capital simblico, no caso o que chama de capital cientfico. A autonomia desse campo , para o autor, relativa e depende da fora ou poder que esse campo tem em relao ao macrocosmo social. Seu grau de independncia poderia ser medido a partir da capacidade que um campo tem de refratar as demandas ou presses sociais.
Dizemos que quanto mais autnomo for um campo, maior ser o seu poder de refrao e mais as imposies externas sero transfiguradas, a ponto, freqentemente, de se tornarem perfeitamente irreconhecveis. O grau de autonomia de um campo tem por indicador principal seu poder refrao, de retraduo. (Bourdieu, 2003: 22 - grifo meu)1

Para Bourdieu (2003), a estrutura com sua distribuio desigual de poder - do campo que determina o que ou no interessante, o que pode e o que no pode ser estudado.
a estrutura das relaes objetivas entre os agentes que determina o que eles podem e no podem fazer. Ou, mais precisamente, a posio que eles ocupam nessa estrutura que determina ou orienta, pelo menos negativamente, suas tomadas de posies (Bourdieu, 2003: 23. itlico meu).

O autor cria o conceito de capital cientfico para explicar essa distribuio desigual de poder. Este capital simblico especfico do campo cientfico construdo e acumulado pelo agente atravs do seu conhecimento e reconhecimento no campo em que atua. O campo para Bourdieu (2003) como um jogo em que os agentes disputam com seus respectivos capitais, mas com a diferena de que o campo tem suas prprias regras em jogo. Assim, quanto mais capital um agente tiver, mais poder ele tem para afirmar suas idias e modificar as regras do jogo se for preciso.
Esse capital (...) repousa sobre o reconhecimento de uma competncia que, para alm dos efeitos, proporciona autoridade e contribui para definir no somente as regras do jogo, mas tambm suas regularidades, as leis segundo as quais vo se
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- Aqui podemos notar uma certa conformidade entre o pensamento de Bourdieu e o de Latour, j que ambos concordam que a cincia ou o cientista traduz os eventos do mundo para algo que lhes seja interessante.

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distribuir os lucros nesse jogo, as leis que fazem que seja ou no importante escrever sobre tal tema, que brilhante ou ultrapassado, e o que mais compensador publicar. (Bourdieu, 2003: 27)

Bourdieu (2003) ainda distingui dois tipos de capitais cientficos, os quais esto sempre misturados, mas que podem ser divididos para melhor se compreender a dinmica do campo cientfico: o capital cientfico puro (aspas no original) e o capital cientfico institucional. O capital cientfico puro (ou simplesmente cientfico para o autor) , para o autor, baseado no reconhecimento que o cientista tem, atravs de suas invenes, descobertas, publicaes, citaes etc. Enfim, um capital baseado no prestgio e no reconhecimento pelos pares. J o capital cientfico institucional (ou temporal) est ligado a ocupao de posies importantes dentro das instituies cientficas. um capital mais poltico, diretamente ligado estrutura hierrquica do campo. Por isso mesmo, esse capital para o autor muito mais fcil de ser transmitido que o capital cientfico puro. Uma das principais diferenas entres esses dois tipos de capitais, segundo o autor, usa forma de acumulao. Enquanto o capital cientfico puro se acumula mais atravs do reconhecimento pelos pares e pode ser medido, por exemplo, pelo nmero de citaes, o capital cientfico institucional mais poltico e pode ser mensurado pela posio institucional (ou cargo) que o agente possui dentro do campo.
Difceis de acumular praticamente, as duas espcies de capital cientifico diferem tambm por suas formas de transmisso. O capital cientfico puro, que, fragilmente objetivado, tem qualquer coisa de impreciso e permanece relativamente indeterminado, tem sempre alguma coisa de carismtico; desse aspecto, extremamente difcil de transmitir na prtica. (...) Ao contrrio, o capital cientfico institucionalizado tem quase as mesmas regras de transmisso que qualquer outra espcie de capital burocrtico, ainda que, em alguns casos, deva assumir a aparncia de uma eleio. (Bourdieu, 2003: 37)

devido, portanto, essa espcie de capitalismo do universo simblico que, para o autor, a estrutura do campo tem um carter preponderantemente conservador. Apesar de todo o discurso da imparcialidade do mtodo cientfico, o cientista est, no fim das contas, sempre em busca do reconhecimento, e, para isso, necessita 115

jogar com as regras do campo, reproduzindo-o em sua maior parte enquanto participa dele e tenta modific-lo em que lhe interessante. Bourdieu ainda introduz o conceito de habitus para explicar a prtica cientfica e sua reproduo. Para ele, o habitus seria uma espcie de ofcio do cientista, contendo as regras gerais ou os modos tradicionais de se fazer cincia, e que de certa forma inconsciente, j que est presente na prtica e no discurso do cientista, mas no tem formulao explcita.
Reintroduzir a idia de habitus remete as prticas cientficas, no para o princpio de uma conscincia cognitiva que age de acordo com as normas explcitas da lgica e do mtodo experimental, mas para a idias de ofcio, ou seja, um sentido prtico dos problemas a tratar, das maneiras adaptadas para os tratar, etc. (Bourdieu, 2003: 59)

O autor enfatiza que os critrios de avaliao dos trabalhos cientficos no podem ser completamente explicitados. H sempre uma dimenso implcita, tcita, uma sabedoria convencional envolvida na avaliao dos trabalhos cientficos. O habitus seria, portanto, um sistema de disposies base, em grande parte inconsciente, transponveis, que tendem a generalizar-se. (Bourdieu, 2004: 63) Em resumo, o campo cientfico, para o autor, um campo particular, onde circula o capital cientfico, atravs da estrutura objetiva desse microcosmo (sendo que cada disciplina ou rea de estudo seria um microcosmos particular) e baseado no habitus cientfico. Os cientistas seriam agentes que constroem os fatos cientficos atravs de lutas, utilizando-se para isso de seu capital cientfico puro e institucional. No h, portanto, imparcialidade cientfica para Bourdieu. Apesar do cdigo cientfico conter princpios como a imparcialidade e a causalidade, seria a estrutura do campo que dirigiria as pesquisas cientficas e a legitimao dos fatos, e os agentes agiriam como sujeitos polticos dentro desse campo. Controvrsias: H uma grande diferena de perspectivas entre as analises de Latour e Bourdieu. Para Latour, os fatos cientficos so construdos atravs de alianas e tradues. Em Cincia em Ao, Latour desenvolve o conceito de traduo (ou mediao) como uma espcie 116

de releitura ou adaptao dos interesses e potenciais dos atores humanos e no-humanos2 pelo ator (no caso, um cientista ou engenheiro) envolvido na construo de um fato ou mquina. Para Latour, um cientista envolvido na construo de um fato cientfico busca alianas com outros atores humanos, traduzindo o que dizem ou querem para os seu prprio interesse, e tambm com atores nohumanos, traduzindo o comportamento de elementos no-humanos ao que lhe interessa ou pode ser til. Latour coloca em simetria os atores humanos e no-humanos, apesar de apenas os atores humanos serem agenciadores (ou fazerem tradues, em suas palavras) e os no-humanos serem apenas agenciados. Em sua tentativa de colocar sociedade e natureza em simetria e desconstru-las completamente, Latour comete o exagero de considerar humanos e o que chama de no-humanos em p de igualdade. Para Bourdieu (2004), isso parece absurdo. Prope que devemos nos atentar aos sujeitos envolvidos na cincia para podermos entender suas estratgias e de que forma a cincia realizada. Para ele, a noo de traduo simplesmente ignora a estrutura hierrquica da cincia, dando a impresso de se trata de uma negociao completamente democrtica. Outra diferena crucial entre Latour e Bourdieu sua viso da natureza. Para Bourdieu, o mundo sim um binrio sociedade/natureza, onde a sociedade mutvel e a natureza imutvel. Enquanto que para Latour, tanto sociedade quanto natureza so constructos. Apesar de tentar relativizar e simetrizar sociedade e natureza, tentando construir uma ontologia sem determinantes, Latour obrigado a apelar para outros termos quase equivalentes: os de atores humanos e no-humanos, numa referncia bvia, porm, aparentemente relativizada. Nesta viso anti-moderna (Latour, 1994), a perspectiva adotada de que a natureza de fato construda, no existindo antes da estabilizao dos fatos. Latour opera uma evidente contradio, j que no d um nome a essa realidade pr-estabilizada, e, se desse, contrariaria o seu prprio discurso, dando outro nome ao que a ontologia moderna chama de natureza. J para Bourdieu, a natureza anterior aos fatos. O autor concorda com outros autores, como Bachelard e Collins, de que a
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- uma analogia prxima para no-humanos seria natural, em oposio s pessoas, ou humanos. Porm, para Latour o natural tambm uma construo, assim como o social. Evita, portanto, utilizar o termo natural substituindo-o por no-humanos.

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realidade uma construo coletiva, e pode-se dizer que os homens ou a cincia constroem e negociam o conhecimento e o que se chama de verdade.
"Collins tem o grande mrito de lembrar que o fato uma construo coletiva e que na interao entrem quem apresenta o fato e quem o reconhece e tenta replic-lo para o falsificar ou confirmar que se constri o fato comprovado e certificado, e de mostrar que processos anlogos aos que descobri no domnio da arte se observam tambm no mundo cientfico". (2004: 36)

Porm, Bourdieu (2004) critica a viso de Latour, que chama de "semiolgica", por considerar tudo como um texto ( uma maneira Geertziana) e de parecer propor muitas vezes (para depois se desculpar) que os fatos cientficos, por serem construdos, so fictcios e que, desse modo, se constri a prpria natureza. Atribui ao seu discurso o que chama de "efeito de radicalidade":
Ao afirmar que fatos so artificiais no sentido em que so fabricados, Latour e Woolgar deixam entender que os fatos so fictcios, no objetivos, no autnticos. O sucesso das afirmaes destes autores resulta do efeito de radicalidade, como diz Yves Gingras, que nasce desse deslize sugerido e encorajado por um hbil uso de conceitos ambguos. (...) uma estratgia tpica que consiste em avanar uma posio muito radical (do tipo: o fato cientfico uma construo ou deslize uma fabricao, portanto um artefato, uma fico) para depois se retratar diante da crtica, refugiando-se em banalidades, ou seja, na face mais vulgar de noes ambguas, como construo, etc. (Bourdieu, 2004: 43)

Para Latour, o conhecimento cientfico simplesmente outra forma de discurso, com algumas caractersticas especficas, porm, no superior a outras formas de discursos sociais. O autor defende que uma das principais diferenas entre o discurso cientfico e outras formas de discurso so as referncias circulantes (Latour, 2001), onde um fato contm sempre referncias a objetos medidos, classificados e catalogados, a outros fatos anteriores e bem aceitos, outros autores, textos etc. Dessa maneira, Latour afirma que a especificidade da cincia poder ser revertida e verificada em caso de dvida do leitor, porm, no deixa de ser uma construo literria, baseada em uma rede (Latour, 2000), como todas as outras realidades (religiosas, polticas etc). J para Bourdieu (2003, 2004), a sada no desacreditar o discurso cientfico para evitar o mau uso da cincia, mas sim entender este processo, ao mesmo tempo cognitivo e poltico, para 118

que se possa fazer uma boa sociologia da cincia e consequentemente uma boa sociologia. Outra de suas principais preocupaes garantir que o campo cientfico seja suficientemente autnomo, ou seja, controlado pela sua prpria estrutura interna, para que este no se corrompa por outros interesses polticos ou econmicos. Para isso, o campo deve ter recursos suficientes para no precisar se vender e sua estrutura hierrquica deve estar baseada mais em capital cientfico (ou capital cientfico puro) do que institucional. Somente assim as disputas internas podem ser justas e produtivas, gerando conhecimento confivel. A principal preocupao de Bourdieu (2003, 2004) no fim das contas a mesma de Merton (1970), ou seja, garantir a autonomia da cincia, ameaada pela economia, que tenta cada vez mais se apoderar e controlar a produo cientfica (por meio de gesto de resultados, por exemplo), pela mdia, pela poltica, pelo discurso ps-moderno e pela sua prpria estrutura interna, que tende s vezes a se basear mais no capital cientfico institucional, muitas vezes ligado ao mercado, do que no capital cientfico puro. Enquanto para Latour os fatos cientficos so fices acreditadas (ou construes literrias estabilizadas), frutos de redes sciotcnicas coerentes, para Bourdieu a cincia baseada em mtodos objetivos, o qual a principal funo exatamente distinguir a verdade da aparncia. Constituda em torno de lutas entre agentes com capitais desiguais, o desafio da cincia manter sua autonomia, graas a qual toda a sua credibilidade est baseada. Uma anlise que procure mapear os atores envolvidos em uma questo cientfica ou na construo de um fato pode, e deve, na minha opinio, identificar a posio desses atores no campo enquanto produzem o saber cientfico. Alias, uma analise pode ser insuficiente ou ingnua se no analisar a questo do poder dos atores dentro de um campo, podendo cair em armadilhas do empirismo lgico ao descrever somente os elementos envolvidos, deixando a impresso de que os fatos s so assim considerados devido aos elementos logicamente ligados. Ao mesmo tempo, no somente atravs do poder ou capital cientfico de um cientista que se imputa uma verdade. Muita criatividade e estratgias esto envolvidas nesse processo, como Knorr-Cetina e Latour ajudam a enxergar. Um mapeamento dos atores (tomando o cuidado de no tomarmos os atores no-humanos como equivalentes ou simtricos) envolvidos na construo de um fato de extrema utilidade na elucidao do processo cientfico,

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principalmente se levado em conta a posio desses atores dentro de seus campos. Concluso Os estudos sociais da cincia tem buscado se apoiar em diferentes tradies tericas, articulando conceitos de autores e correntes diferenciadas. Latour retoma a concepo de traduo de Michel Serres, enquanto Bourdieu resgata a noo de doxa para explicar as interaes do campo cientfico. A presente anlise das implicaes tericas desses autores aponta para uma situao de aproximaes e distanciamentos negociados, em que possvel perceber as duas tradies se complementando ou divergindo de acordo com tpicos especficos. As noes de redes e campos podem indicar uma diferenciao de formas de se conceber as disputas cientficas. Enquanto as redes indicariam uma relao horizontal e complementar entre os agentes cientficos, o conceito de campo retoma a verticalidade e hierarquia das oportunidades de apropriao dos recursos de pesquisa. O estabelecimento dessa diferena pode soar injusta com a perspectiva latouriana, que identifica hierarquias entre os agentes que compem as redes, da mesma forma que imputar a Bourdieu um olhar de sobrevo sobre as atividades cientficas e tecnolgicas pode soar como exagero. Um caminho proveitoso para os estudos sociais da cincia pode ser o da rearticulao das tradies tericas, buscando reagrupar e sintetizar o arsenal conceitual construdo ao longo das ltimas trs dcadas. A elaborao de uma agenda de pesquisa mais transversal e discontnua pode proporcionar um dilogo mais fecundo para os analistas das instituies e teorias cientficas, exatamente em um momento em que ocorre uma diluio de fronteiras entre disiplinas, expertises e esferas de atuao das competncias de pesquisa.

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